Onde entra o erro em nosso setor?
Vivemos na era do sucesso. Só há espaço para os melhores negócios, as melhores ONGs, os melhores profissionais. Mas a dura vida do, que costumo chamar de ‘fantástica fábrica do impacto socioambiental’, passa longe de ser um mar de flores do sucesso. Muito pelo contrário. É uma rotina de muito trabalho, de uma coleção de desafios, tropeços e cabeçadas, para alguns pequenos flashes de acertos e conquistas. Refiro-me obviamente à grande maioria das organizações deste setor, não àquelas mais privilegiadas que tropeçam menos e se saem muito bem obrigado nas fotos e capas do setor.
Pois então, onde entra o fracasso e o erro em nosso setor? Qual espaço temos aberto para dialogar sobre eles? Afinal, eles são uma constante em nosso setor, mas parece que não existem, não é? Parecem ser seres de outro planeta, afinal, só se pode falar sobre coisas positivas e glamourosas no lindo mundo socioambiental.
Mas antes que você, caro(a) leitor(a) considere esse texto pessimista, já me explico. A ideia não é falar de pontos negativos do nosso setor – sim, eles existem e são abundantes, mas ficam pra outro momento – mas sim sobre como temos lidado com esses fracassos em nosso setor. Qual espaço o fracasso, o erro, a falha, a ‘cagada’ ocupa em nosso setor, em nossas práticas?
Olhando de maneira bastante fria, podemos dizer que ocupam um espaço muito marginal, se é que ocupam algum espaço. Um espaço restrito à rádio corredor, aos bastidores dos eventos, aos cafés e conversas em
off. Raramente ocupam espaços nas mesas dos eventos, na programação principal do setor, nas publicações, etc.
Mas porque falaríamos sobre fracasso? Qual a utilidade dessa abordagem?
Eu vejo várias utilidades, mas me detenho em pelo menos três:
a.
Falar sobre erros e fracassos aproxima o setor da sua realidade
– afinal, lidamos com problemas sociais e ambientais, com comunidades, organizações e situações longe do pleno funcionamento, longe das condições ideais, enfim, longe do sucesso. Ora, seria então bastante razoável trazermos esse contexto para nossas atuações, não acha? Não é o que temos visto em nosso setor, infelizmente. Possivelmente nosso esforço de positivar nossa matéria-prima passa pelo desafio de captação de recursos e de parceiros. Compreendo bem essa situação, mas isso não torna os problemas sociais/ambientais que enfrentamos menos duros.
b.
Uma adequada abordagem sobre erros pode ser fonte de inspiração para diversas outras organizações
e projetos do nosso setor. Afinal, boa parte deles (nós) bate cabeça no dia a dia de intervenções, de captação de $, de aspectos burocráticos, etc. Dividir aprendizados gerados a partir de erros pode ser bastante libertador e inspirador para outros profissionais e organizações, sinalizando que sim, o erro existe e nosso objetivo não é anulá-lo (isso é impossível), mas sim saber lidar com ele de uma maneira mais natural e pedagógica possível. Em outras palavras, ao invés de varrer o erro pra debaixo do tapete, trazê-lo pra mesa e dialogar sobre ele, de maneira organizada e inteligente, obviamente.
c. Testar, errar, redesenhar, testar novamente são práticas muito presentes no mundo das startups mas também muito alinhadas ao campo da inovação social. Afinal,
temos problemas complexos para ‘resolvermos’ e é preciso testar, errar, experimentar até encontrarmos as abordagens e práticas mais adequadas em nossos projetos. Para que isso seja uma realidade é fundamental lidarmos com o erro. Ele não pode ser algo a ser evitado, mas, sobretudo, ele estará presente em nossa atuação e precisa ser considerado e ressignificado. Pra isso, o primeiro passo é desconstruirmos o tabu com o qual ainda lidamos com esse assunto. O tabu de não podermos errar. Temos que ser perfeitos, sempre, ainda que saibamos que isso é impossível. O tabu de não podermos falar sobre fracassos. Afinal, isso vai queimar o filme da nossa organização e vai complicar nossa vida de captação de recursos e de parceiros. Será? Afinal, quem nunca errou que atire a primeira pedra. Será que até mesmo nossos financiadores não erram? O ponto central que levanto aqui é
como lidar com os erros em nosso projeto ou organização, afinal, eles sempre estarão presentes em nosso dia a dia.
E como sua organização lida com erros e fracassos? Ela segue varrendo-os para debaixo do tapete? Ou há abertura para tratá-los? Qual? Como? Quem puxa esse tipo de conversa? Quando?
Aqui entra um ponto importante. A ideia de trazer erros para a mesa de diálogo de um projeto ou organização não tem como enfoque tornar esse momento um muro de lamentações. Ficar se martirizando não levará a organização a avanços institucionais ou programáticos. A abordagem tem que ser pedagógica. OK, erramos. Os erros foram esses e eles nos trazem que tipo de aprendizado institucional, técnico, burocrático, operacional, programático? Esses aprendizados, por sua vez, nos levam a quais avanços em nossas práticas institucionais?
Entendo que o caminho vai nessa direção. Obviamente para isso funcionar é fundamental que haja abertura por parte da liderança da organização para facilitar este tipo de conversa. Conversas significativas que saiam do muro das lamentações e que não caiam numa caça aos culpados. O enfoque não deve nunca ser esse. Reconheço que se trata de uma tarefa difícil, não à toa, muito rara de ver acontecer em nosso setor.
Para fechar, deixo alguns exemplos inspiradores sobre o assunto. O primeiro exemplo é uma publicação gringa que destrinchou esse tema dos erros, olhando para o tema do Venture Philanthropy e do Investimento Social. Recomendo a leitura. Embora o enfoque seja mais voltado ao campo dos negócios de impacto, há vários insights que o documento traz que se encaixam bem com o campo das OSCs.
https://www.evpa.ngo/insights/learning-failures-venture-philanthropy-and-social-investment
Um segundo exemplo é a série da Aupa (da qual me orgulho de ter contribuído com seu desenho), chamada ‘Eu Errei’. Ela traz 10 empreendedores sociais contando sobre seus erros, de uma maneira super transparente e interessante. Vale muito a pena conferir.
Finalmente uma iniciativa do mundo das startups, que começou no México, mas se tornou global: o ‘Fuckup nights’. Empreendedores(as) são convidados a falar sobre seus fracassos e daí emergem ótimas histórias. No mapa que consta lá no site é possível ver quais histórias brasileiras já passaram por lá.
É isso. Deixemos o frescor desse início de ano nos inspirar a trazer para mesa nossos erros laborais, institucionais. Afinal, eles são matéria-prima para as transformações socioambientais que tanto almejamos. Licença poética para finalizar:
nunca cometo o mesmo erro
duas vezes
já cometo duas três
quatro cinco seis
até esse erro aprender
que só o erro tem vez